Em 25
anos, número de habeas corpus no STJ bate em 300 mil
FONTE: STJ
O Superior Tribunal de Justiça
(STJ) completa 25 anos de instalação no próximo mês e o habeas corpus número
300.000 está para bater às portas da corte. A crise parecia sem solução – o uso
de habeas corpus como substitutivo de recurso era a praxe. Para alguns, isso
significava desvirtuar o sistema recursal do processo penal. Em cinco anos (de
2005 a 2009), o número de habeas corpus que chegaram ao STJ triplicou. O
tribunal recebeu 36.125 impetrações somente no ano de 2011.
Em 2012, para restabelecer a racionalidade
do sistema, o STJ passou a restringir o uso do habeas corpus como substitutivo
de recurso, admitindo-o apenas nas hipóteses de ameaça real e ilegítima ao
direito de locomoção do investigado. O presidente da Quinta Turma, ministro
Marco Aurélio Bellizze, frisou, à época, que o habeas corpus se destina “a
reparar constrangimento ilegal evidente, incontroverso, indisfarçável e que,
portanto, se mostra de plano comprovável e perceptível ao julgador”. Não serve,
portanto, à correção de decisão sujeita a recurso próprio, previsto no processo
penal.
Nessa toada, os ministros
passaram a não conhecer das impetrações que não correspondessem a esses
requisitos. Situações como sequestro de bens e direito de visita a preso, que
não guardam qualquer relação com a liberdade física do investigado, não são
mais avaliadas pelos julgadores, caso cheguem ao STJ por meio de habeas corpus.
O resultado não tardou a aparecer.
Redução
Em 2012 e 2013, houve uma redução
no número de habeas corpus distribuídos. A demanda diminuiu 35% – no final do
ano passado, a soma bateu em 23.252 impetrações. O ministro da Sexta Turma
Rogerio Schietti Cruz avalia que a marca da qual o STJ se aproxima não é motivo
de comemoração, mas de preocupação. “A leitura mais angustiante é a de que
milhares de violações à liberdade humana chegam ao STJ ano a ano”, diz ele.
Para Schietti, a retração inicial das impetrações
se deu por conta da sinalização em direção ao maior rigor no exame do cabimento
de habeas corpus substitutivos do recurso próprio. Mas ele esclarece que o STJ
continuou a examinar o conteúdo das impetrações para, mesmo quando não
conhecido o pedido, conceder a ordem de ofício, se constatado evidente
constrangimento ilegal ao direito de locomoção do paciente.
O ministro entende que, dessa
forma, não se está fazendo nenhuma restrição aos direitos fundamentais. “Seria
uma restrição à defesa se não examinada a indicada coação ilegal. Mas as duas
turmas do STJ [Quinta e Sexta Turma, que julgam direito penal] não se têm
eximido de verificar a efetiva ocorrência de coação a saná-la pela ação
constitucional”, afirma Schietti.
Defesa
A Constituição Federal determina
que seja concedido habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado
de sofrer violência ou coação no direito de ir e vir, por ilegalidade ou abuso
de poder. Já o recurso em habeas corpus tem tramitação que obedece a rito
específico, e precisa ser apresentado no STJ após decisão que nega habeas
corpus nos tribunais de segunda instância.
“Não tenho dúvidas de que o
estreitamento do habeas corpus é um grande mal para todos”, opina o
criminalista Roberto Podval. Para ele, está sendo debitado ao paciente o
ônus de uma Justiça com excesso de trabalho. “Ao invés de se discutir uma
solução para aumentar o número de juízes, se procura limitar o acesso ao
Judiciário”, protesta Podval.
Ainda são quase dois mil habeas
corpus que chegam ao STJ mensalmente, mas em contrapartida à redução do número
de habeas corpus, os recursos em habeas corpus passaram a ser mais utilizados pelas
defesas. Em 2011, apenas 2.325 recursos desse tipo haviam sido interpostos. Em
2013, o volume de RHCs disparou: foram 9.180 recursos interpostos, um aumento
de quase 300%.
A professora de direito penal
Simone Schroeder alerta para a necessidade de se fazer uma reflexão quanto aos
300 mil habeas corpus do STJ. Para ela, é preciso analisar se o número
exacerbado ocorre porque há correspondentes ilegalidades que afetam o direito
de locomoção ou se há utilização propositada do habeas corpus para atingir um
direito de forma mais célere e eficaz, ao substituir um recurso ordinário. “Se
há um abarrotamento de habeas corpus, é porque também há um número excessivo de
equívocos”, diz. “O remédio não pode ser mais agressivo que a enfermidade”,
completa.
No STF
A admissão ou não de habeas
corpus como substitutivo de recurso ordinário chegou ao plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF) no final do ano passado. No HC 113.198/STF, um cidadão
pediu o trancamento de ação penal por crime eleitoral e utilizou o instrumento
como substitutivo de RHC para tornar a apreciação da causa mais rápida.
O julgamento encontra-se empatado
e suspenso por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, ex-ministro do
STJ. O relator, Dias Toffoli, defende a ampla admissão dos HCs, mesmo que
substitutivos dos recursos ordinários. Já Roberto Barroso considera inadequada
a via processual. É possível que este caso específico seja encerrado sem uma
conclusão, em razão de uma petição recebida pelo STF informando perda de
objeto.
No entanto, a polêmica deverá
retornar à pauta em outros julgamentos. A questão começou a ser discutida em
agosto de 2012, quando houve uma mudança de jurisprudência por parte da
Primeira Turma do STF durante o julgamento do HC 109.956/STF. Até então, o
Supremo vinha admitindo os pedidos que tinham por objetivo substituir o RHC.
Nesse julgamento, por maioria, decidiu-se não mais aceitar tal substituição.
Reforma
Em 2009, um grupo de juristas
liderado pelo ministro aposentado do STJ Hamilton Carvalhido entregou ao Senado
Federal um anteprojeto para o novo Código de Processo Penal (CPP). Houve
emendas e o PLS 156/09 foi aprovado no Senado, sem que fosse alterado o
cabimento do habeas corpus.
No ano seguinte, o projeto chegou
à Câmara dos Deputados sob a designação de PL 8045/10. Desde então, aguarda a
constituição de comissão especial para emitir parecer sobre o projeto e
emendas.
O ministro Carvalhido lembra que
os juristas da comissão anteviram o problema do excesso de habeas corpus no STJ
e no STF. “Isso foi pesado e medido por todos nós, que tínhamos contato com a
realidade da Justiça. Conhecíamos a demanda crescente de habeas corpus, com
todas as suas implicações”, diz. “Não se trata de uma questão estatística
apenas. Trata-se da efetividade da Justiça. Só uma demanda que tem resposta
produz equilíbrio social”, avalia.
Prevendo uma futura restrição ao
habeas corpus pelos tribunais, a proposta da comissão de jurista era garantir o
habeas corpus a quem estivesse sofrendo ou ameaçado de sofrer prisão ilegal. O
ministro explica que a controvérsia reside na expressão “ameaçado de sofrer”,
pois, com a evolução da jurisprudência, chegou-se à ideia de que, instaurada a
ação penal, já há um risco à liberdade, ou até antes, quando da instauração do
inquérito policial.
Restrição
Carvalhido esclarece que a
interpretação dada pela comissão à época não deixava ao desabrigo da jurisdição
nenhuma violação, apenas restringindo o cabimento à prisão ou ameaça. “Quando a
gente fecha uma entrada, tem de abrir outra porta. Não se podem suprimir
direitos”, afirma.
Boa parte dos processos nos
tribunais é constituída de HCs (no STJ, esta é a terceira classe processual em
volume). Enquanto os habeas corpus têm preferência legal de apreciação, outros
recursos ficam aguardando julgamento. Para o ministro aposentado, o recurso
ordinário em habeas corpus deveria ser tão célere quanto o habeas corpus, mas
não é. Daí a opção da defesa pelo habeas corpus, afinal se trata da liberdade
das pessoas.
Carvalhido avalia que o direito
penal está numa encruzilhada. “A pletora de processos não pode ser resolvida em
prejuízo da liberdade individual. Tem de ser resolvida com ação política
concreta. Racionalizar o processo, desenvolver a jurisdição, criar novas formas
de composição, criar soluções racionais para o problema penal... Não se pode
ignorar o insucesso das prisões. Prisão deve ser o último recurso”, sugere o
ministro aposentado.
Direito de defesa
De olho na restrição ao uso do
habeas corpus pelo STF e STJ, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) instaurou
na semana passada um grupo denominado “Comissão Especial de Garantia do Direito
de Defesa”. O presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado
Coêlho, acredita que o habeas corpus tem sofrido ataques no Brasil atualmente,
na tentativa de “esvaziar” o instrumento.
A comissão trabalhará no estudo e
na defesa dos processos legais que assegurem o direito de defesa. O
vice-presidente do grupo, Nabor Bulhões, reconhece a existência de “enorme
número de feitos em tramitação no STJ e STF”, especialmente habeas corpus.
“Contudo, não concordamos com a orientação segundo a qual a solução seria
restringir o acesso à jurisdição, e no caso, acesso à jurisdição constitucional
da liberdade mediante habeas corpus”, opina o advogado.
Alternativas
Bulhões admite que muitas
impetrações são descabidas ou insubsistentes. Mas, para o jurista, isso não se
resolve com restrições. “Antes disso, temos de exaurir as alternativas de
solução do problema do número de feitos em tramitação nos tribunais, com o
eventual aumento do número de membros das cortes e a adoção de outros
mecanismos de racionalização da atividade jurisdicional que não representem
negativa ou restrição de acesso à Justiça”, sugere.
O vice-presidente da comissão
lembra que, ao lado do recurso especial, a Constituição atribuiu ao STJ outras
competências, entre elas a de preservar a liberdade mediante habeas corpus.
Bulhões entende que, embora o grande número de habeas corpus comprometa o
desempenho da corte no julgamento dos outros recursos, “não se pode dar às suas
atribuições de guarda da liberdade importância menor do que aquela relacionada
às outras competências”.
Presunção de inocência
O debate quanto ao cabimento de
recursos e habeas corpus leva à reflexão sobre o sistema recursal penal
brasileiro. O ministro do STJ Rogerio Schietti critica a redação dada à
presunção de inocência na Constituição de 1988, que, para ele, estimula o prolongamento
dos litígios penais.
“É preciso coragem para
reconhecer isso. O grande drama da Justiça criminal brasileira é a demora
excessiva do julgamento definitivo das ações penais”, diz. O ministro credita o
problema não apenas à quantidade elevada de recursos postos à disposição das
partes, mas também à inadequada gestão dos processos por muitos juízes e
tribunais.
Schietti explica que, em quase
todos os países, afirma-se algo como “todos devem ser considerados inocentes
até que se prove o contrário”. No Brasil, porém, preferiu-se prolongar a
vigência da presunção de inocência até o “trânsito em julgado” da condenação.
O magistrado ressalta que antes
desse momento processual não é possível iniciar a execução da pena já definida
em pelo menos dois graus de jurisdição: “Com isso, não é raro serem opostos
três, quatro, cinco sucessivos embargos declaratórios contra a mesma decisão,
prolatada já em sede de jurisdição extraordinária, onde também há um excesso de
recursos disponibilizados pela legislação processual.”
O ministro do STJ acredita que,
preservado o núcleo essencial dessa garantia fundamental (a presunção de
inocência), não há razão para impedir que se alcance o saudável equilíbrio
entre os interesses que devem proteger o indivíduo contra abusos e excessos da
atividade punitiva. Para Schietti, não se pode desprezar o dever estatal de
assegurar a todos o direito, também previsto na Constituição, de que os
processos encontrem seu desfecho em tempo razoável, “quer para a punição dos
culpados, quer para a absolvição dos inocentes”.